FUSCA: UM CARRO PARA HITLER

Rodrigo Dornelles


Pequenino, arredondado e versátil. Não há pessoa que nunca tenha avistado um rechonchudinho fusquinha guinando por aí. Automóvel hoje setentão, foi batizado KdF-Wagen na Alemanha em 1938. Seu nascimento se deve à então recém-inaugurada fábrica Volkswagen (ou “carro do povo” na língua alemã). Grande feito do engenheiro austríaco Ferdinand Porsche, o fusca foi considerado o carro mais vendido do mundo. Apesar da longevidade, em julho de 2003, seu último modelo foi oficialmente produzido na cidade de Puebla no México. 

Foram 21.529.464 carros construídos desde a Segunda Guerra Mundial. Mesmo ultrapassado tecnologicamente, muitos exemplares ainda estão nas ruas. E uma unidade azul-bebê do carrinho já virou peça de museu na cidade alemã de Wolfsburg, sede da Volkswagen. Por tudo isto, o fusca é extremamente popular. Porém, o que poucos sabem é que seu projeto de fabricação foi um pedido irrecusável de Adolf Hitler, o grande líder da Alemanha nazista. 

Para compreendermos a grande importância histórica dos fuscas, é preciso voltar bastante no tempo. Derrotado na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o Estado alemão sofreu duras penalizações pelo Tratado de Versalhes (1919), assinado pelos países vitoriosos no conflito. A nação germânica embarcava numa grave crise econômica, marcada por altos índices inflacionários e grandes números de desemprego. Igualmente comprometidas, estavam as bases industriais alemãs, afetadas pelos custos da Grande Guerra. 

Historiadores apontam que, em 1931, a Alemanha ainda continuava assolada por uma dura recessão, apesar de auxílio financeiro dos Estados Unidos. Assim, o país tinha um dos piores índices de motorização da Europa. As poucas fábricas de automóveis eram especializadas sobretudo em carros de luxo, montados à mão, e ainda muito caros.

Foi esta Alemanha em crise o palco para a ascensão do nacional-socialismo alemão, mais conhecido como nazismo. Industrialização era uma das principais metas do Estado Nazista. Consequentemente, a indústria de automóveis do país acabou tomando rumos diferentes, marcados por transformações tecnológicas fundamentais, sérios interesses militares e pesada propaganda política.

Durante as décadas de 1920 e 1930, a Europa assistiu ao surgimento do totalitarismo ou nazifascismo. Os representantes da ideologia totalitária julgavam os modelos políticos democrático-liberais responsáveis pela terrível recessão daquele período. De acordo com os nazifascistas, a sociedade capitalista era individualista e instável. Apenas um Estado forte, conservador, de poder centralizado, ultranacionalista e militarizado seria capaz de garantir crescimento econômico, ordem política e harmonia social. 

Em meio à conjuntura de carestia, pauperização dos setores médio urbanos, centenas de desempregados, greves operárias constantes e atividades comunistas, as elites germânicas apoiavam o crescimento do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (Nazista). Em 1927, os dirigentes do partido alertavam:

“O Estado burguês chega ao seu fim. Temos de forjar uma nova Alemanha! Trabalhadores do cérebro e trabalhadores do braço, nas suas mãos repousa o destino do povo alemão!”

(Extraído de: Mello & Costa. Historia Moderna e Contemporânea. São Paulo: Scipione, 1999, p. 322.)

Acumulando inúmeras vitórias nas urnas para compor o parlamento alemão (Reichstag), os nazistas chegaram ao poder com Adolf Hitler. Primeiramente, Hitler foi nomeado chanceler em 1932. Em seguida, assumiu o título de Führer (grande chefe) no ano seguinte, instituindo um regime político autárquico que extinguiu vários partidos políticos e sindicatos. Estabeleceu uma pesada censura aos meios de comunicação. Perseguiu e puniu seus opositores, principalmente lideranças comunistas. Defendeu o militarismo e o expansionismo do “terceiro reich”. Mas para tudo isso, havia uma minuciosa política econômica intervencionista que ditava as regras industriais do país.

Sobre o assunto, José Alves de Souza Júnior, professor da Universidade Federal do Pará, afirma:

“Com o objetivo de restaurar sua condição de potência econômica e militar, Hitler deu início na Alemanha a um processo de recuperação econômica centrado nas indústrias pesadas e bélicas que, apesar de continuarem nas mãos da iniciativa privada, passaram a produzir com base nas necessidades do Estado Nazista, que se tornou o seu principal cliente. Essa ‘economia de guerra’, que dava ao Estado poderes para intervir na iniciativa privada, significou a manutenção dos salários dos trabalhadores em níveis baixos, além de obrigá-los a fazer inúmeras contribuições para a reconstrução da Alemanha”.

(Adaptado de: ALVES. Mundo Contemporâneo. Belém: Paka-Tatu, 2002, pp. 137-138) 

O Estado alemão exigia o esforço de seus cidadãos para garantir avanço econômico, através de uma ideologia corporativista que associava trabalho e patriotismo. Desta forma, os nazistas vislumbravam um futuro de crescimento do padrão de vida alemão. Logo, a propaganda nazista implantou a ideia da família alemã patriota, mas também motorizada. Assim, o projeto de um carro pequeno, econômico, fácil de produzir e fabricado por trabalhadores alemães começou a ganhar popularidade. Era o conceito do "Volks Auto" ou "Volks Wagen", isto é, "carro popular".


(Protótipo do fusca desenvolvido por Ferdinand Porsche: Typ “12”. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Porsche_typ12.jpg)


O grande nome do projeto “Das Auto” era Ferdinand Porsche, um talentoso e reconhecido engenheiro austríaco que se tornaria homem de confiança de Hitler. Os dois se conheceram em meados de 1933, quando o líder nazista tomou conhecimento dos bem-sucedidos projetos automotivos do famoso austríaco. Assim, para criar o “carro do povo alemão”, Hitler fez as seguintes exigências a Porsche:

· O automóvel deveria comportar uma família tradicional alemã: dois adultos e três crianças;

· O veículo deveria alcançar os 100km/h, consumindo aproximadamente 13Km por litro de combustível;

· O motor seria refrigerado a ar, mais adequado para uma região de temperaturas muito baixas;

· Para utilidade militar, o carro deveria transportar três soldados e uma metralhadora;

· O veículo não poderia custar mais que 1000 marcos imperiais.

Assim, em 1934, Porsche publicava seu famoso "Estudo Sobre o Desenho e Construção do Carro Popular Alemão". A partir de uma criteriosa análise do mercado alemão, Porsche concluiu que a opção mais econômica seria projetar um automóvel rústico, movido a gasolina e com motor traseiro, um design pouco comum para época. Mesmo assim, o custo de produção não possibilitaria a venda do Auto por menos de 1500 marcos imperiais. Hitler não concordou com estes valores e exigia um carro que custasse mais barato.


(Esquema de arrefecimento do motor do fusca. Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/7/72/K%C3%A4ferk%C3%BChlung.svg)

Produzir um carro popular na Alemanha era um desafio, pois o intervencionismo econômico nazista apontava novas diretrizes para o mercado industrial alemão. O país tinha tradição na fabricação de carros de luxo, voltados para as classes mais abastadas. A Associação de Fabricantes de Automóveis Alemães (RDA) duvidava do sucesso do projeto de um carro para o povo. Os executivos germânicos não estavam acostumados com a intervenção governamental para produção de veículos. Nos padrões do liberalismo econômico, os fabricantes detinham o controle dos processos produtivos visando lucro, sem intervenção estatal. Além disso, desenvolver um carro pequeno com bom desempenho exigia novas tecnologias de produção.

Por conta da pressa de Hitler em anunciar o “carro do povo alemão”, Ferdinand Porsche tinha precisamente seis meses para apresentar o veículo ao Führer. Após vários estudos, testes e protótipos, Porsche e sua respeitada equipe de designers e engenheiros mecânicos apresentou sua criação: um automóvel compacto, de carroceria leve, linhas curvas que lembravam um besouro e com motor de bom desempenho. Assim, em 1937 nascia a Gesellschaft Zur Vorbereitung des Deutschen Volkswagen (Sociedade para produção do automóvel alemão) ou simplesmente Volkswagen. Esta empresa estatal tinha uma secção especial denominada Kraft durch Freude (KdF) ou “Força pela Alegria”, responsável pela comercialização do invento de Porsche, agora chamado KdF-Wagen.


(Inauguração da fábrica Volkswagen por Adolf Hitler em 1938. Fonte: http://www.corbisimages.com/stock-photo/rights-managed/HU002681/hitler-opening-volkswagen-factory?popup=1)

O primeiro KdF foi apresentado a sociedade alemã em uma cerimônia solene, com a presença de Hitler. Houve a participação de milhares de cidadãos com cobertura da imprensa nazista e considerável repercussão internacional. O automóvel, apelidado de Käfer pelos alemães, era a nova propaganda política do totalitarismo germânico e fruto do desenvolvimento industrial do III Reich sob comando hitlerista. O veículo tinha baixo custo e o governo oferecia formas parceladas de compra, visando agradar a classe trabalhadora alemã. Para reduzir espaço, o fusca não possuía radiador para arrefecer o motor de quatro cilindros. Ele se localizava na traseira da carroceria e era refrigerado a ar, por conta de uma aerodinâmica inteligente. A suspensão baseada em barras resistentes de torção aumentava a economia do carro e sua durabilidade. O “carro do povo” era um sucesso. O entusiasmo de muitos alemães pelas “benesses” do nacional-socialismo só aumentava.


(Porsche e Hitler. Fonte: http://turbozens.com/wp-content/uploads/2014/07/S1u1UNr.jpg)

Apesar do sucesso da propaganda nazista, hoje sabemos que, durante a Segunda Guerra Mundial, a comercialização do fusca foi muito limitada. Várias versões do seu motor e carroceria-base tiveram largo uso militar. Na verdade, Hitler sempre apresentou interesse na engenharia automotiva para fins bélicos. E toda nova tecnologia do fusca correspondia às necessidades beligerantes. Com o fim do conflito mundial, muitos políticos, militares e tecnocratas envolvidos com o governo nazista foram punidos. Porsche foi obrigado a prosseguir com a produção do Käfer na França como punição de guerra. Mas a medida fracassou diante de incompatibilidades técnicas e industriais. Isto resultou na prisão do engenheiro austríaco por vinte meses, sem julgamento, como criminoso de guerra, pois desenvolveu tecnologia a serviço do nazismo.


(Juventude Hitlerista na Alemanha. Fonte: http://www.corbisimages.com/stock-photo/rights-managed/42-28739638/nazi-member-in-parade-in-germany-ca?popup=1)

Mais tarde, o sucesso mundial do automóvel KdF-Wagen (pela versatilidade, economia e desempenho) deixaria no passado suas origens nazistas. Em pouco tempo, o carro era fabricado em vários países, ganhando um “apelido” internacional: beetle. A Volkswagen se tornou uma empresa privada e multinacional. E no fim da vida, Ferdinand Porsche ainda assumiria o cargo de consultor da empresa, criando inclusive uma linha particular de automóveis luxuosos com seu sobrenome. Quanto ao fusca, seus modelos chegariam ao Brasil em 1957, com a expansão da montadora alemã para a América Latina. Estava lançada a “linha de automóveis a ar”. Várias versões se tornaram famosas entre os brasileiros: Karmann Ghia, Variant e Volkswagen TL. Tinha inicio a construção de uma importante memória da vida urbana brasileira, ainda presente nas nossas ruas.

Bibliografia:

Volkswagen do Brasil. Manual do proprietário. Sedan Volkswagen. São Paulo: 1964.

Mello & Costa. História Moderna e Contemporânea. São Paulo: Scipione, 1999.

José Alves Sousa Junior. Mundo Contemporâneo. Belém: Paka-Tatu, 2002.

O Livro do Carro. Enciclopédia Visual. São Paulo: Editora Globo, 2005.

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